Sobre o Congresso
O compromisso do Estado com as políticas sociais, incluindo o Sistema Único de Saúde (SUS), tem sofrido grandes retrocessos, especialmente após o golpe de Estado e a instalação do governo de austeridade no país. Os ataques constantes à democracia e ao Estado de direito ocasionam uma economia de escassez, insegurança, incertezas, rupturas e aumento das fragilidades no Estado de bem-estar, aprofundando as iniquidades em saúde e a desigualdade social. Eles têm contribuído para a mercantilização das relações sociais e dos valores relativos à proteção social. Têm gerado também um profundo ataque moralista e discriminatório a segmentos da população que vinham conquistando espaços políticos de reconhecimento e avanços na sua inclusão social, por intermédio dos movimentos feministas, negros, indígenas, LGBT e antimanicomial, entre outros.
A responsabilidade e o compromisso social da ciência em buscar respostas para os problemas sociais diante desse cenário complexo demandam, ao campo das ciências sociais e humanas, o desafio de ir além de uma produção científica rigorosa, densa e crítica. A valorização de outros saberes aponta para o reconhecimento das múltiplas formas e espaços de produção de conhecimento, bem como de práticas diferentes daquelas hegemonizadas pela tradição ocidental. Essa é uma forma de enfrentamento do que Boaventura Santos denomina de desperdício da experiência. Essa ideia encontra outra base teórica de apoio em Michel Foucault, que defendeu, ao longo do seu projeto militante, a importância de “dar voz aos sem voz”, o que o torna conhecido por ter sido o primeiro a ensinar a indignidade de falar em nome dos outros, segundo as palavras de Roberto Machado.
O pressuposto de reconhecimento do outro se associa, necessariamente, àquele de luta do outro pelo seu próprio empoderamento. Situando-se a partir de perspectivas teóricas que nascem em países periféricos, é importante ressaltar a obra de Paulo Freire, com ideias igualmente defensoras de um papel protagonista para grupos situados na condição de oprimido, ou na obra de Kabengele Munanga, segundo a qual a luta por emancipação não pode ser pautada por valores de um universalismo ou humanismo abstrato, que não reconheça as diferenças que produzem desigualdades.
A construção compartilhada do conhecimento constitui um princípio possível de ser desenvolvido como orientador da abordagem dos processos de formação de pessoas, de pesquisa e de trabalhos sociais, pautando-se pelo diálogo, pela interculturalidade e pelo que Boaventura Santos designa ecologia de saberes. É a construção de novas formas de produção do conhecimento, com base em epistemologias capazes de construir "com" e não "sobre".
É nessa virada epistemológica que surge também a possibilidade de pensar em uma construção compartilhada para o bem viver, adensada por uma perspectiva politizadora que articula saber a poder (inclusive poder de transformação de realidades) e ao processo de descolonização. Bem viver é uma concepção originária dos povos indígenas da América Latina que considera a vida em plenitude, valorizando a harmonia e equilíbrio com a terra, com o cosmo e com todas as formas de existência. Sumak Kawsay para o povo Quechua e Suma Qamaña para o povo Aymara, a filosofia do bem viver se coloca como uma referência para a construção de uma nova sociedade, a partir do reconhecimento das diversas culturas existentes no mundo e do respeito à natureza.
Como processo, a construção compartilhada pode ser protagonizada por diferentes atores sociais (com seus saberes, pensares e fazeres) de modo tanto a ensinarem como a aprenderem conhecimentos relevantes para uma atuação crítica, ativa e criativa diante da realidade e seus principais problemas. Assim, por meio dessa construção, espera-se desvelar atitudes, estratégias, habilidades, hábitos, experiências comunitárias, ações profissionais e trabalhos sociais que aprimorem o protagonismo das pessoas na produção individual e coletiva de enfrentamentos às situações de opressão e injustiça social.
O bem viver é uma filosofia com potencial descolonizador, desde seu lugar de produção de conhecimento - povos indígenas da América Latina – e em função do seu projeto de vida comum. Buscar o bem viver não significa negar os conflitos sociais eminentes, as desigualdades sociais e econômicas que implicam diretamente nas condições de saúde da sociedade. A construção compartilhada do bem viver nos convida a refletir sobre a questão: neste sistema predador, como podemos juntos construir estratégias que fortaleçam a vida? Bem viver significa ter abundância, respeitar e conviver com as diferenças, construir relações sociais de colaboração, complementariedade e reciprocidade.
Na contramão de um projeto de bem viver, se pode observar, no âmbito do meio ambiente e das relações sociais, mudanças que comprometem o próprio processo civilizatório da humanidade, no que diz respeito a valores de solidariedade, de igualdade e de respeito à dignidade humana. Nessa direção, salienta-se que os imensos obstáculos estruturais e conjunturais do Brasil estão desmontando o caráter público, universal e gratuito do SUS, colocando em risco direitos sociais conquistados há mais de 30 anos. Portanto, torna-se fundamental resistir às políticas de austeridade, no Brasil e no mundo, e avançar na construção compartilhada do bem viver, construindo pensamentos e ações que expandam a cidadania e os modos emancipatórios de cuidar e participar em saúde.
Dado o amplo reconhecimento da experiência de extensão popular, o seu protagonismo na área de educação junto à sociedade civil, particularmente do Grupo de Pesquisa Educação Popular em Saúde da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) na proposição, fundamentação, consolidação e multiplicação desta perspectiva acadêmica, a sede do 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde “Igualdade nas diferenças: enfrentamentos na construção compartilhada do bem viver e o SUS” será na cidade de João Pessoa-PB. O tema escolhido para o Congresso mantém a continuidade do movimento reflexivo já anteriormente presente na Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), que organizou o seu 7° Congresso, em Cuiabá-MT, com o tema “Pensamento crítico, emancipação e alteridade: agir em saúde na (ad)diversidade”.
Finalmente, vale ressaltar que o 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde acontecerá na comemoração dos 40 anos da ABRASCO. A luta pela democracia e o movimento da Reforma Sanitária colaboraram para a constituição da área de Saúde Coletiva, inclusive da associação científica que a representa – a ABRASCO, criada em 1979. Eixo estruturante dessa criação, as Ciências Sociais e Humanas em Saúde contribuem para transformar crise em debate na atual conjuntura política e institucional do Brasil, aliando-se de modo dialógico, crítico e construtivo nos enfrentamentos em defesa da vida.
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